rooftop bar do hotel Hilton está fechado ao público para uma festa privada. O grupo do costume – mulheres, loiras e divertidas, e homens, endinheirados e entediantes – mata a sede de qualquer coisa parecida com capitalismo selvagem.

Atrás do balcão, os bartenders preparam bebidas coloridas e, azafamados, abrem garrafas de vinhos tintos, brancos e espumantes, num interminável desfile de Bordéus vários, champagnepinot noirs e cabernet sauvignons. A minha conta vai em dois tintos indistintos e um dos melhores brancos que bebi até hoje, um Chateau Barons de Rothschild, servido por Tomáš, um jovem, e tão deslocado quanto eu, empregado de balcão, com quem me entretive a trocar opiniões sobre a fauna do local com uma vista de 180.º sobre a capital da República Checa.

Com pouco mais de um milhão de habitantes, Praga, terra-natal de Rainer Maria Rilke e do omnipresente Franz Kafka, lar de conspirações várias, espionagem e revoluções, de um dos mais inspiradores castelos da Europa e da sempre icónica Ponte Carlos, está entre as mais belas pequenas cidades do centro da Europa. O historiador e escritor austríaco Josef Hormayr chamou-lhe Cidade das Cem Espirais. E, de facto, se há algo em que a capital do antigo reino da Boémia se distingue é na sua arquitectura. Os estilos percorrem todo o caminho traçado pela civilização europeia – românico, barroco e gótico, com os respectivos ex-líbris na Basílica de São Jorge, na Praça do Município e na Ponde Carlos, esta última uma construção em arenito da Boémia que remonta ao século XII, decorada com estátuas barrocas, das quais se destaca a de São João Nepomuceno, que os locais acreditam trazer boa sorte a quem a tocar.

Foi precisamente na mais expressiva das muitas pontes que atravessam o rio que banha a cidade, o Moldava, que, no início de tarde de sábado do meu fim-de-semana checo, pouco depois do meio-dia, me cruzei com um grupo de turistas norte-americanos vestidos de calções, t-shirts e meias brancas e com sandálias de couro. Juntei-me ao grupo ainda a tempo de ouvir a guia, com uma bandeirinha na mão, avisar “é hora de almoço. Cuidado com os carteiristas e tentem não dar nas vistas.” Conduzi o exercício mental how to spot an american tourist e deixei o grupo com a certeza quase absoluta de que algum, se não vários, daqueles americanos seria assaltado junto a uma das muitas esplanadas da avenida Karlova, no centro da cidade.

Beware of the pickpockets – portanto. Relativamente pequeno, passível de ser visitado num fim-de-semana de escapadela, o centro histórico de Praga está classificado como Património Mundial pela UNESCO e serviu de morada a inúmeros monarcas de diferentes dinastias ao longo dos séculos – talvez o mais notável tenha sido Carlos IV, primeiro rei da Boémia a tornar-se Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.

O passeio perfeito por esta zona tem início no Clementinum, complexo de edifícios que hoje alberga a Biblioteca Nacional da República Checa e que foi no passado uma capela dedicada a São Clemente, um mosteiro Dominicano, um colégio Jesuíta e uma universidade (fundada por Maria Teresa de Áustria) – Jorge Luís Borges menciona-o no conto O Milagre Secreto, inserido em Ficções. Atravessando a Ponte Carlos, de leste para oeste, exige-se uma visita ao Museu Franz Kafka, que fica localizado em Malá Strana, bairro onde é possível parar para um lanche demorado, num dos seus muitos cafés e pastelarias, ou ver o colorido Mural de John Lennon, que em muito aborreceu o cinzento regime comunista nos anos 80. Próximo destino, rumando a norte, o Castelo de Praga, quer para apreciar a vista para as cúpulas douradas da cidade como para entrar na Catedral de São Vito e na Basílica de São Jorge. Continuando a romaria no sentido dos ponteiros do relógio, desenhando um círculo perfeito em torno do centro histórico, atravessar novamente o Moldava, desta vez pela ponte Mánesuv, assim baptizada em homenagem ao pintor Josef Mánes, e caminhar para sul rumo à casa de partida.

Além do mencionado castelo, em que Kafka se inspirou para escrever a sua obra homónima, o mapa de um amante de literatura poderá ainda ostentar um pin no cemitério judeu de Praga, que Umberto Eco usou como título num dos seus mais reconhecidos romances históricos. Já os apreciadores de antiguidades e velharias deverão estar avisados para algumas “armadilhas para turistas”, como o mercado de Kolbenova, numa zona da cidade imprópria para quem nunca estabeleceu contacto com a arquitectura socialista. Este mercado fica numa zona degradada e que em nada fará jus à beleza de Praga – saí de lá com três estatuetas de Lenine, Estaline e Gottwald por 20 euros, uma compra que ainda hoje me deixa intrigado.

De resto, Praga vale uma visita por tantas razões quanto estas: está à distância de um voo low cost, a sua pequena dimensão permite-nos conhecê-la a pé e até os preços, baixos, em hotéis, bares e restaurantes parecem querer convidar o mais on a budget de entre os turistas.

A excepção a este nível de vida acessível dá pelo nome de Cloud 9, onde termino o meu Bordeaux blanc, 40 metros acima do Moldava, com vista para o castelo e audição para uma conversa entre dois homens na meia-idade que discutem atributos alheios (femininos, claro).

Ouve-se o tilintar de copos, um dos quarentões distraídos choca com o empregado e, por pouco, não derruba um tabuleiro que valerá algumas centenas de euros em vinho:

«Isto não teria piada nenhuma», diz-me Tomáš, em surdina, depois de um golpe de equilibrismo que salva, como dizem os  críticos de vinhos, os preciosos néctares de Baco.

«Pelo contrário, isso é que teria piada.», discordei, com uma piscadela de olho e apontando a camisa alva do cliente desatento.

E Tomáš, incapaz de conter o riso, trouxe-me outro Lafite.